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Historicizar a estética - parte 3

“O Esquadrão é mais um retrato das deformações de um novo tipo de fascismo, aparentemente fora do tempo e do espaço. (…) O ventre que gerou Fleury e o governo nacional militarista é o mesmo e ainda está fecundo”. Você pode dar um presunto legal (1973-2006).

Quando escreveu e gravou este trecho da narração do filme que realizou clandestinamente, Sergio Muniz talvez já suspeitasse que não poderia levar seu filme às telas – não naquele momento. Você também pode dar um presunto legal é um filme dedicado a descrever, apontar e conjecturar sobre os esquadrões da morte e a evolução das práticas do grupo paramilitar de instrumento policial a instrumento de terror de Estado. Apalpando a escuridão das manchetes referentes aos esquadrões e associando-as às notícias sobre a tortura de presos políticos, o filme examina fragmentos da história da repressão na ditadura, no momento mesmo em que ela acontecia – razão pela qual o cineasta acabou tomando a decisão da autocensura. De 1974 a 2003, Você também pode dar um presunto legal não existiu. Ele passa a “cumprir sua função social” (para retomar o termo usado por Muniz), entrando num circuito paralelo de difusão, a partir de 2006, quando o tempo já havia transformado sua reflexão do presente em elaboração histórica. 

Este filme corajoso, ainda pouco conhecido pela sociedade brasileira, é acompanhado nesta mini-programação pelo curta-metragem francês On vous parle du Brésil: Marighella de Chris Marker (1970). O curta de Marker é um dos episódios da série de contrainformação fílmica On vous parle, criada pelocoletivo de produção e difusão Slon (Société de lancement des oeuvres nouvelles) em 1969. Este episódio da série, assim como On vous parle du Brésil: Tortures (1969), foi coproduzido pelo Slon e pelo Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC), e realizado a pedido do instituto cubano.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RRayfbGVuVI

Dentre as muitas aproximações entre os filmes – logísticas, temáticas, estéticas -, cabe notar neste curto texto o destaque dado pelos dois filmes ao delegado Sérgio Paranhos Fleury. Chefe do DOPS de São Paulo e figura importante na cadeia de comando dos órgãos governamentais envolvidos no desaparecimento, tortura e morte de pessoas, Fleury foi também uma das figuras centrais do esquadrão da morte em atividade na periferia de São Paulo entre 1960 e 1970. Em 1970, um ano após o assassinato de Marighella (sob o comando de Fleury), no mesmo período em que Chris Marker realizou seu filme sobre Carlos Marighella, o então procurador do Ministério Público paulista, Hélio Bicudo, iniciava uma investigação sobre crimes cometidos pelo esquadrão da Morte de São Paulo. Quando Muniz se debruçava sobre a montagem de seu filme em 1973, enquanto Hélio Bicudo e outros procuradores haviam sido afastados, a sociedade brasileira assistia à criação de uma lei, conhecida como “lei Fleury”, que vinha proteger o chefe do esquadrão da morte e os demais policiais participantes da organização criminosa. 

Eis a máquina de violência e apagamento que o filme de Sergio Muniz se empenha em confrontar. Trata-se, no fundo, de demonstrar uma das faces do fascismo.

Nosso desejo é que esse filme de Muniz, ocultado por tantos anos, possa se expandir no coração da desordem atual. 

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